domingo, 4 de dezembro de 2011

04/12/2011 

O CALCANHAR E O SONHO 

Por ROBERTO VIEIRA

A bola rebatida por Manuel ganha o meio campo. Sócrates ergue os braços. Marcado de perto por dois são-paulinos, o acadêmico nada pôde fazer em campo. Nem precisava. O empate sem gols já bastava ao Botafogo...

A morte. O cadáver repousa na mesa de anatomia. Quais teriam sido os sonhos do pobre coitado? Tríceps, aorta abdominal, sonho, agonistas e antagonistas. Apenas indigentes doam seus corpos para as aulas de anatomia. Os pobre diabos que ninguém sabe quem são. Homenageados na formatura. Os cadáveres desconhecidos. Sinergistas.

O primeiro calcanhar a gente nunca esquece. A bola no campinho da rua, sem direção, pião rodopiando nas pernas longas de gazela, o segundo, o reflexo, maléolo lateral da tíbia, defesa desnorteada. Gol.

Plantão. Concentração. Timão. Cidade grande. Lorico e o bedel. Jaleco e a Fiel. Sonâmbulo entre a festa do povão. Frio e calculista. A ditadura observa o rapaz do interior, intelectual, jeito de marxista em pele de cordeiro. Tudo que a ditadura deseja são jogadores desligados da política. Palhinha pra Sócrates pra Palhinha pra Sócrates. Tabelinhas. O punho erguido. Panteras Negras? S2.

Sutura. Nylon. Tiros na madrugada. Torcedores do Comercial e do Botafogo pedem autógrafo. Sócrates chega em casa e se tranca no quarto. Ele morreu nas suas mãos. As mãos que nada puderam fazer para deter o fluxo da realidade. Sócrates observa os pés. Pés que reescrevem a existência com a insistência dos imortais. O destino dos pés e das mãos. O cheiro de éter. O bisturi descrevendo a linha imaginária na luta diária contra a morte. Um gole, Doutor! A vida nos bares de Ribeirão. Um gole, Doutor! A súbita ilusão do sonho.

Democracia. Telê. Cigarros. A pelota descreve um arco e cai sobre o corpo de Krol. As mãos finitas no ambulatório empurram o líbero prescrito nas teias do Morumbi. No instante seguinte, Ajax sucumbe diante da farmacologia do craque. O templo profanado de Atenas na fria Alemanha se desmancha em goleada. Quem sonha calcanhar, por vezes descobre toda uma Ilha de Kós.

Sócrates dinamita a terra de Lenine. Festa no Planalto. Festa nos territórios da goiabada cascão com queijo. O reino dos pobres. A bola auscultando o país anestesiado em meio a festa dos heróis em ação. Malvinas. Maradonas. Rossis. A derrota no chute rasteiro sob o olhar perplexo de Zoff. O chute cirúrgico. O paciente morto no chão do Sarriá. Voa, canarinho! O canarinho não voa mais. A terra amada, Brasil, amanhece com os olhos no futuro negro das eleições indiretas.

O homem magro, Quixote. Repousa no leito da UTI. O amigo João morreu no ano passado, médico também. Bebia para esquecer a vida. Quantas vezes beberam nas noites ao som do violão? Sócrates lhe contara sobre Juazeiro do Norte. Juazeiro que abençoara Sócrates como um novo Padim Ciço. Da sacada do hotel, a multidão fazia novenas e credos. Casagrande olhou para o homem de barba indefinida. Os olhos do Doutor estavam marejados. Havana. 1959. Ceará. Homens de pé descalço para ver o Doutor jogar. A responsabilidade de um homem. Sertões. Hemorragia.

Zico e o Doutor. Sonho de uma noite de verão. O corpo já não obedecia. Os pés estavam mãos. A Nova República era o velho com sabor de novo. Os hospitais sucateados. As universidades entregues ao Deus-dará. Zico lança. Sócrates mata no peito e percebe que Florença, Rio, Santos, Campinas todas são a busca por um tempo perdido. Diploma na parede. Clínica. Quem eu sou?

A Espanha faz seu gol. O juiz diz que não. México de Zapata. Gol de cabeça. O hino brasileiro e as ruas das cidades se imaginando 82. Mas a história só se repete como farsa. Ou não? Hemoglobina. Plátano. Apolo sorri. A bola não entra. Sócrates imagina-se descumprindo o juramento. Errei? A morte visita o craque na madrugada. O Doutor não tem medo. Medo de que? A vida é uma metáfora que a gente chuta no ângulo. Muitas vezes a vida se perde pela última linha. No apito final do juiz. Noutras vezes, inesperadamente, a vida ganha as redes num peru inesperado do goleiro. Transplante. Errei?

A casa vazia. Os copos vazios. Os companheiros partiram sem dizer adeus. Ou será que foi Sócrates que não disse adeus? As camisas que me vestiram, meu muito obrigado. Será que fui digno de entrar nas suas moradas? Será que deixo saudade? Li certa vez sobre Veludo. Martim Francisco. Dissequei um cadáver dilacerado pela bebida. O que sabe o ser humano sobre o ser humano? Contanto que eu viva sem corrupção, possa eu angariar o respeito de todos os homens em todos os tempos.

A criança recebe o passe. De costas para o gol. Como dominar a pelota? Como desafiar a geometria no tempo? Como achar o caminho do gol? Sinapses, memória, reflexo. Como a imagem do Quixote na chuva paulistana, o moleque descreve um giro sobre si próprio e toca docemente de calcanhar na história. No instante seguinte, o moleque ergue seu punho em direção ao Olimpo.

Na longa noite do hospital, o vulto gigantesco do craque sorri. Sozinho. Cumprindo sua vida e sua arte.

Sócrates vive...




Aos 15 anos, este foi o primeiro texto meu a aparecer em uma revista. Placar de 1979. E eu falava exatamente de meu ídolo na época... o Doutor... Doutor que protegia a bola sagrada com o corpo e os longos e infinitos braços - que o diga Krol, da Ajax . Descanse em paz, Magrão...

Escrito por Roberto Vieira às 09h40

Um comentário:

Adalberto Day disse...

Grande texto do Roberto
O nosso Dr. da Bola merece todo nosso carinho respeito e admiração pelo que fez no futebol, pelo esporte e política.
Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau