sexta-feira, 7 de outubro de 2016



Gilmar da elegância
Por Antonio Falcão
Gilmar é Érico Veríssimo, onipresente / de braços abertos
como o redentor / esse fiador / tão vasto como um continente.
Eis uma receita internacional: o bom goleiro deve ter calma, agilidade, segurança, colocação e reflexos rápidos.
Pois Gilmar dos Santos Neves – paulista da cidade de Santos, nascido em 22 de agosto de 1930 – tinha tais ingredientes. Isso desde quando foi infantil no Jabaquara, o “Leão do Macuco” de sua terra praiana. E ao time de cima chegou em 50, sendo o guarda-redes mais vazado do certame estadual. Porém, sem perder a elegância jamais, desde jo-vem ele era tranqüilo até quando tomava um frango, o lance infeliz que crucifica qualquer arqueiro.
Mas em 1951 o Corinthians comprou alguém ao Jabuca e Gilmar foi de contrapeso. No novo clube, simplesmente, o homem do arco era Cabeção, que esteve em várias ocasiões no escrete brasileiro – inclusive, com Veludo, na Copa do Mundo de 54 como reserva de Castilho. Aí, Gilmar aguardou a vez. E, assim que ela surgiu, nota 10: comeu a bola, agarrando tudo. Isso até enfrentar a Portuguesa de Desportos – de Djalma Santos, Brandãozinho, Julinho e Pinga – pelo certame paulista, diante da qual o Timão levou de 7 a 3. De má fé, uns irresponsáveis diretores alvinegros insinuaram que ele se vendera à Lusa. E daí o guarda-meta – a antítese do gaveteiro – ficaria seis meses de fora, sem poder ir sequer à sede social do Corinthians. Todavia, a equipe foi campeã e, em 1952, viajou à Europa, onde Gilmar voltou a ser titular, venceu dez dos 11 jogos, defendendo cinco pênaltis. A essa altura, ele se dera em definitivo conta que o sonho de ser médico havia sido posto para escanteio e que seria mesmo atleta profissional. Confirmando isso, no fim desse ano, o mosqueteiro Corinthians lhe atravessou no peito uma baita faixa de bicampeão do estado de São Paulo.
No clube, Gilmar revezava com Cabeção. E para o escrete nacional foi cha-mado em 1953, quando esteve na reserva de Castilho e Barbosa no sul-americano do Peru. Depois, após bisar o torneio Rio-São Paulo pelo Timão, Zezé Moreira quis levá-lo à Copa do Mundo na Suíça, mas o goleiro se contundiu. Quando sarou, Gilmar viveu um dos feitos maiores do Parque São Jorge: o título estadual de 54, ano do IV Centenário da cidade de São Paulo. A partir daí, ele seria o dono da meta do Brasil e da seleção paulista.
E assim venceu a Copa do Mundo de 1958, quando o soviético Iashin – o maior goleiro do planeta – o veria como o melhor da posição desse Mundial. Porém, em julho de 61, já casado, o guarda-vala corintiano brigou com a diretoria do clube, que lhe atribuiu fingir contusões, fazendo “corpo mole”. De troco, Gilmar, que fora operado do braço, ainda convalescendo respondeu pela imprensa aos caluniadores. Estes ignoravam que ele havia dado o melhor de si ao time paulistano; esqueciam dos quase 700 jogos em 11 anos de atuação do Girafa – como Gilmar era chamado carinhosamente pelos companhei-os e pela mídia. Foi a gota d'água: o Corinthians vendeu o seu passe ao Santos, que reservava ao goleiro as glórias graúdas da sua vida esportiva. Antes de sair do Parque São Jorge, porém, ele desabafou: “Fiquei chateado, pois pensava em parar de jogar no Corinthians”.
Na Vila Belmiro, com efeito, Gilmar era só mais um naquele time de Pelé. Lá, estavam Mauro Ramos, Formiga, Dorval, Mengálvio e Pagão. Mais Zito, Lima, Coutinho e Pepe, crias da Vila. E os que viriam adiante: Carlos Alberto, Ramos Delgado, Orlando Peçanha, Joel Camargo, Clodoaldo, Toninho Guerreiro e Edu. Em 1962, no escrete, Gilmar dos Santos Neves ganhou o bicampeonato mundial no Chile. E na meta santista também, repetindo isso em 64-65 e 67-68 pelo clube peixeiro no certame estadual. No rol de troféus do ex-traordinário guardião do Santos, só de Rio-São Paulo ele venceu ainda os de 63, 64 e 66. Mais cinco vezes a Taça Brasil – 61-65. Duas edições da Taça Li-bertadores da América – 62-63. O mesmo número no mundial interclubes – 62-63. E uma Taça de Prata em 1968.
Afora as duas conquistas da Taça Jules Rimet pela seleção, Girafa venceu 5 vezes (contra o Paraguai) a Copa Oswaldo Cruz – 1955-58-61-62-68. Três dis-putas (contra a Argentina) da Copa Roca – 57-60-63. Duas vezes (contra o Chile) a Copa Bernardo O'Higgins – 59-60. E uma Copa do Atlântico – 1960. Assim, no restrito universo dos artistas fora de série do futebol brasileiro, nin-guém colecionou mais títulos que esse Gilmar dos Santos Neves.
Em 1966, já com quase 36 anos, ele esteve na Copa do Mundo da Inglaterra. Fez duas das 3 partidas pelo desarrumado time brasileiro, dividindo a vaga na meta com o pernambucano e botafoguense Manga. Nesse tempo, o educa-do Girafa – sem expulsões de campo em mais de 10 anos de atuação – recebeu o troféu Belfort Duarte. E ele aí talvez tenha sabido que João Evangelista Belfort Duarte, símbolo da disciplina esportiva, fora maranhense, campeão carioca pelo América em 1913 e que havia morrido no Rio. Por fim, cercado de êxito, Gilmar pôs a camisa brasileira pela última vez em 1969, no auge da ditadura do general Médici. Ao todo, ele fez 95 jogos oficiais pelo Brasil – uma grata referência para a seleção.
No mesmo ano que saiu do escrete, o goleiro santista também largou o fu-tebol. E foi concluir a educação dos dois filhos, que lhe dariam dois netos. Na consciência, a certeza do dever cumprido. E das canchas por onde andara Gil-mar trazia a satisfação de ser o maior guarda-vala das histórias do Sport Clube Corinthians Paulista. E também do Santos. Além de se constituir em um dos mais completos atletas do País, formando com Barbosa e Manga os três maio-res guarda-metas brasileiros de todos os tempos. E, por isso, um digno exemplo para outros grandes que viriam depois, como: Leão, Carlos, Taffarel, Dida, Marcos, Rogério Ceni, Júlio César e Gomes. No entanto, o médico que ele sonhara para si na mocidade, floresceu no seu filho – Rogério Izar Neves –, cirurgião plástico e emérito pesquisador de câncer de pele, em São Paulo.
Longe da bola, como executivo profissional, Gilmar ainda se dedicou ao comércio de automóvel – e com êxito, como tudo que fez. Também emprestou os seus talento e prestígio à Secretaria de Esportes da prefeitura da capital paulista, fazendo da atribuição do órgão um instrumento eficaz contra a violência urbana. E na velhice – decerto – o ex-guardião tenha recordado alguns lances incríveis que protagonizou no futebol. Realmente, como poderia es-quecer aquele jogo com o Boca Juniors, em pleno estádio de La Bombonera de Buenos Aires, onde em 1963 o Santos venceu uma das Libertadores graças às firmeza, elasticidade e autoconfiança dele? E os dois pênaltis defendidos no ex-estádio londrino de Wembley, atuando pelo Brasil contra os ingleses? São muitas, e tantas, e tão boas as coisas que ele fez.
Em junho de 2000, às vésperas de completar 70 anos, o Girafa sofreu um derrame que o levou ao internamento de um mês em uma UTI paulistana. Mas saiu consciente, apesar de pequenos problemas de articulação verbal. Nisso, o mundo inteiro voltou a torcer por Gilmar – dessa feita, para que vivesse ainda um pouco mais. E viverá, sem dúvida. Inclusive para ver a seleção do Brasil ganhar a Copa do Mundo de 2006 na Alemanha, onde o nome dele até hoje ainda ecoa e recebe aplausos.

Extraído do livro de Antonio Falcão:
Os Artistas do Futebol Brasileiro
(50 minibiografias)
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Copyright by Antonio Leite Falcão, 2006
E-mail: afalkao@hotmail.com

7 comentários:

Nori Fischer disse...

Ola Valdir
Muito obrigado por lembrar de mim,pois estou aqui na Italia e e muito bom ler algo que coresponde aquilo que e do meu pais.
Att
Nori

Adalberto Day disse...

Valdir
Mais uma sensacional matéria... por Antonio Falcão. Fale de Gilmar dos Santos Neves, é algo maravilhoso. Um dos maiores goleiros do mundo de todos os tempos. Gilmar figura entre goleiros famosos do Brasil, como Barbosa e hoje Júlio Cesar. Gilmar jogou em uma época que todos adoravam o Santos de Pelé. O Santos era admirado por todas as torcidas (talvez não a do Corinthians). Quem não se lembra de Gilmar, Olavo (Lima), Mauro, Orlando Peçanha, Dalmo, Calvet, Zito, Mengalvio, Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe, e tantos outros. Mas voltando a Gilmar, era um grande goleiro, elegante, firme, e de uma postura invejável debaixo dos três postes. Gilmar sempre será referencia para todos os goleiros, um mito do nosso esporte.
Abraços Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau.

Edinho disse...

CHICO,
1) FALTA SUA FOTO LENDÁRIA AO LADO DO GILMAR, NILTON SANTOS E OUTROS;
2) PENSEI QUE FOSSE SUA FOTO E FUI OLHAR DIREITO ERA O GILMAR(DESCULPE ELE É MAIS NOVO QUE VC)
3) PARABENS O BLOG ESTA MUITO BONITO

MANDE NOTÍCIAS
ABS,Edinho/VRedonda

Badinho disse...

Caro Chiquinho.
Parabéns pelo teu belo e atualizado "blog", sobre sua vida, seus clubes e amigos. Vale a pena pesquizar
seu "livro-histórico", pois retornamos ao bom tempo em que éramos jogadores influenciados apenas pelo
prazer de jogar bola.
Abrasços do Badinho.

Airton Leitão disse...

Eu estava no Maracanã, em 1969, no jogo Brasil x Inglaterra, quando Gilmar jogaria 10 minutos para completar 100 jogos na Seleção e se despedir oficialmente. Ele jogou os 90 minutos, agarrou muito (já havia parado de jogar) e muita gente queria que ele fosse á Copa do México.
Outro momento bonito foi ver Nilton Santos (tinha que ser ele) empurrando a cadeira de rodas de Gilmar na inauguração do estádio de Palmas (TO), que tem o nome do "Enciclopédia".
Valeu, Valdir!

Iata Anderson disse...

Amigo Valdir,

Tenho acompanhado o seu blog, sempre muito bom. A biografia do Gylmar está excelnte. Foi o melhor goleiro brasileiro, sem dúvida.
As histórias e números do Pelé impressionam. Só no Brasil ele é achincalhado. Próprio de um povo mal-educado, é assim mesmo. Adoro ver
as fotos dos times, rever amigos. Gostaria que você me mandasse aquela foto do Bonsucesso, com quem viajei em 1977, um mês pela Espanha,
como jornalista da delegação. Desse grupo só não foram você, Samarone e Miguel. Até o Abedi estava com a gente e conto uma história dele
muito engraçado, no meu livro (que vai sair, claro).

Grande abraço.
Iata Anderson

Carlos Celso disse...

Caro Valdir,

Estive, agora, na boca do gol.
Saudosista que sou, fiz uma viagem maravilhos no tempo.
Aproveito para informar que já "tracei" seu livro de capa a capa, ou, como se fala na minha cidade do interior de Pernambuco, "de cabo a rabo".
Parabéns.
Pelo menos para quem gosta de futebol, é uma ótima leitura.

Grande abraço,

Carlos Celso