sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Gentil Fontana

Por Roberto Vieira

O dia 6 de agosto de 1967 foi um domingo de sol e surpresas. A multidão carioca superlotou as praias pela manhã, almoçou a velha feijoada no almoço e depois, vascaínos, botafoguenses e amigos do bom futebol se dirigiram ao estádio Mário Filho. Outros tantos milhares de torcedores permaneceram em suas casas, ouvidos colados no radinho de pilha, imaginando as peripécias que teria de fazer o Vasco da Gama para resistir ao talento de Jairzinho e Gérson.

O Botafogo do jovem e promissor técnico Zagalo alinhou: Manga, Moreira, Zé Carlos, Paulistinha e Valtencir; Carlos Roberto, Gerson e Afonsinho; Rogerio, Jairzinho e Roberto. O Vasco da Gama do velho frasista Gentil Cardoso: Edson Borracha, Jorge Luiz, Brito, Fontana e Oldair; Jedir e Danilo Menezes; Nado, Nei, Acilino e Luizinho.

O jogo válido pela Taça da Guanabara começou quente. Brito marcou contra suas próprias redes. O companheiro de zaga Fontana soltou um daqueles palavrões que reservava para os amigos do peito:

“Vai enfeitar na p...!”

Brito respondeu no mesmo tom. Mas no banco, o velho Gentil Cardoso levou a mão ao coração e os olhos para a tribuna. Lá estava o Queixada preparando sua coluna da Última Hora. Gentil suspirou para si mesmo:

“Era tão mais fácil no tempo de Ademir!”

O Botafogo prosseguiu no toque de bola. Jairzinho debochando dos esforços de Fontana para lhe mandar pra casa mais cedo. Rogério deixando Oldair na saudade – Oldair que não tinha liberdade de ir ao ataque e desferir suas bombas. E o baile continuou com o gol de Roberto aos 32 minutos.

A falha agora foi de Fontana e Brito retribui com o mesmo carinho:

“Vai enfeitar na p...”

Vestiárias.

Desolação geral.

Gentil Cardoso sente o final de carreira nos ombros.

Gentil que quebrara preconceitos no Fluminense e no Náutico.

Gentil cujos conceitos eram arcaicos no tempo de Sargeant Peppers.

O segundo tempo começou sob o olhar atento de João Saldanha e a crítica de Armando Nogueira:

“Não se brinca com o adversário!”

A bola rolava pelos pés de Carlos Roberto e encontrava Afonsinho. Outro toque de letra e a bola chegava aos pés de Moreira. Então, a pelota seguia para os dedos enviesados de Manga que a devolvia a Valtencir. Havia um clima de oba-oba no time de Zagalo, uma espécie de enfado com a própria categoria. Tanto enfado levou o time ao desastre. Jairzinho é expulso depois de brincar de jogar futebol. Em seguida, Nei é mandado mais cedo para o chuveiro. Agora são dez contra dez – ou será que não?

Porque no gramado do Maracanã surge um jogador que entrará para a história deste clássico. Um capixaba, descendente de italianos, da distante Santa Teresa. Um zagueiro batizado com o nome do jesuíta José de Anchieta. Um zagueiro que não tem nada de religioso em campo. Um zagueiro chamado Fontana.

Aos 27 minutos, sob os gritos de Fontana que decide mudar os rumos da história, Danilo Menezes bate uma falta. Fontana desvia para Luisinho que entra cara a cara com Manga e balança as redes botafoguenses.

Zagalo leva as mãos à cabeça. Gentil Cardoso pressente o inimigo acuado.

Dois minutos depois, Oldair cobra falta na extrema esquerda. Zé Carlos e Paulistinha hesitam e o pernambucano Nado coloca no canto do também pernambucano Manga: 2 a 2. A torcida vascaína explode nas arquibancadas.

Faltava o golpe final. A lâmina do carrasco.

E ela vem aos 37 minutos.

Nado bate uma falta da direita na cabeça de José de Anchieta Fontana.

O Maracanã se cala.

E depois o grito de gol ganha vida.

Vasco da Gama 3 a 2.

O Botafogo já não existe em campo. O árbitro Airton Vieira de Morais, o popular Sansão, apita o final da partida. Um carnaval toma conta das quatro linhas. O presidente vascaíno, João Silva passa mal e é atendido pelo médico do clube.

Em lágrimas, Gentil Cardoso é levado nos ombros pelo zagueiro Brito.

Gentil que vive os seus últimos momentos de Rei.

Num canto, com os olhos brilhando na noite carioca, o zagueiro Fontana ainda observa o cruzamento de Nado, a bola beijando as redes de Manga.

Como um velho xerife dos faroestes do passado, Fontana deixa o estádio com a certeza do dever cumprido.

E caminha lentamente para outro duelo.

NOTA DO BLOG: O texto é dedicado ao zagueiro Fontana, falecido no dia 9 de setembro de 1990. Fontana, tio do atacante Betinho – craque que atuou nos 3 grandes de Pernambuco – e amigo, além de personagem, do Mestre Valdir Appel.


9 comentários:

Silvio Kohler disse...

Caro Valdi!
Sensacional os seus posts acerca de um tempo mágico e maravilhoso de nosso futebol. Lembrar Fontana e tantos outros grandes jogadores de uma passado infelizmente cada vez mais distante, é lembrar de um tempo em que o futebol fazia sim a alegria e a felicidade do povo Brasileiro. Congratulações.

Mauro disse...

Magistral, Valdir! Esse foi um dos grandes jogos que marcaram a minha infancia. Os cinco gols da partida foram marcados na baliza do lado da torcida do Vasco e eu estava justamente atras do gol. Deve ter sido a primeira vez que fiquei rouco por alguns dias, de tanto gritar durante um jogo no Maracana. Ou pelo menos nao me lembro de nenhum antes. Nunca tinha visto uma virada daquelas.
Um abraco,
Mauro

Valdir Appel disse...

Paola,
Fiquei feliz com a tua visita ao blog.
Devo muito ao teu avô. Tenho por ele um carinho especial.Foi ele que me lançou no gol do Vasco. Ele me chamava de goleiro da Jovem Guarda, referencia aos meus longos cabelos. Abraço

Adalberto Day disse...

Valdir
Jogar contra Gerson e Jairzinho não era fácil. Mas não eram só os dois, otime todo era bom, até o Afonsinho lançando moda da barbicha.... O Vasco também tinha craques Brito, Fontana, Oldair, Nado sensacional ponteiro, Nei que veio do Corinthians, e o Luizinho Boiadeiro que veio do Atl.Goianiense, que depois o Paraná do São Paulo quebrou sua perna e nunca mais jogou, ele era bom demais. Ma o Botafogo era fogo.
E o queixada Ademir Vascaíno dos bons se não o melhor da história do clube, fazendo de suas narrações.
ah, Fontana que saudades, que jogadoraço., e o Luizinho esse era fera. E de quebra o Nado, brilhante, e o Xerife foi lá e resolveu. Eu ouvi este jogo na voz de Valdir Amaral...foi demais para nós vascaínos aqui em SC - imagina no RJ.
Fontana, certamente faz dupla com Domingos da Guia, e o paraíso não perde para ninguém. Mas também jogam neste time o Barbosa, Ademir Queixada, Heleno de Freitas e o Zizinho, e até o Valter Marciano...é mole.
Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau

Iata Anderson disse...

AMIGO VALDIR

EXCELENTE ESSE RELATO DO JOGO. EU ESTAVA NA ARQUIBANCADA, NESSE DOMINGO. FOI UM JOGAÇO, EU LEMBRO PORQUE ACOMPANHAVA O JAIRZINHO,
MEU AMIGO E COLEGA DE QUARTEL. NÃO SABIA DOS DETALHES QUE ENVOLVERAM O GRANDE CLÁSSICO. SEMPRE QUE PODIA EU IA AOS JOGOS DO BOTAFOGO,
POR CAUSA DO GERSON, DE QUEM SOU UM GRANDE ADMIRADOR. DEPOIS TRABALHAMOS JUNTOS, NA RADIO TUPI. O BLOG TEM DESSAS COISAS. NOS LEVA
AO PASSADO. MARAVILHA.

GRANDE ABRAÇO
IATA ANDERSON

Ricardo Antônio disse...

Caro Valdir, ótimo texto! Deu pra sentir o clima do jogo! E essa partida eu não poderia ter visto... ainda estava no ventre de minha mãe. Que virada do Vasco! Valeu!!! Forte abraço.

Antonio Estevam Neiva disse...

Valdir,
Foi um grande zagueiro.
Participou de um jogo na Copa de 70 contra a Romênia.
Que dupla hein, BRITO E FONTANA. Quem tinha coragem de encarar?
Abração.
Saudações vascaínas.

Roberto Assaf disse...

Valdir, eu fui nesse jogo, não tinha nada com isso, sempre fui Flamengo desde criança, mas ia em todos os jogos, 1967 é um ano horrível para nós, mas sei que esse jogo foi sensacional, a torcida do Vasco gritando "Gentil, Gentil, Gentil", enfim, acho que estou ficando velho

Airton Leitão disse...

Volta e meia me deparo com histórias do Valdir com as quais tive o privilégio de compartilhar, pois estava no estádio assistindo ao jgo narrado por ele. Esse Vasco x Botafogo foi um dos poucos que assisti nas cadeiras, isto porque cheguei em cima da hora e não havia mais ingresso para a arquibancada, meu setor predileto (no ano passado fui assistir um jogo do Vasco com meus dois filhos e mais três netos, um deles com apenas dois anos, ou seja, três gerações de vascaínos).
Foi bom demais vivenciar aquela virada lembrada agora por Valdir.
Muito obrigado, Valdir, por mais essa recordação.