segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Jerusalém
Por Roberto Vieira
A vitrine da Sloper brilhava no vazio da Rua Nova. Milhares de luzes vermelhas, verdes, amarelas. Azuis. O olhar do menino negro como as asas da graúna brilhavam também. O menino estranhamente trajado com os farrapos do que um dia foi uma camisa de futebol. Farrapos achados no chão depois de um jogo. Rasgados por algum torcedor na fúria de uma derrota. As luzes brilham e iluminam os restos do uniforme como se fossem os refletores de um estádio de futebol. Alguém solta fogos. O menino olha as luzes. O menino esquecera até a fome. O devaneio permanece até a chegada de outros meninos. Maiores. Das outras vezes, o menino pequeno corria pela ponte até os mistérios da Imperatriz e Rua Velha. Até a Praça Maciel Pinheiro onde ficavam os jogadores bacanas que vinham de bem longe. Tinha um jogador que ele vira cercado de gente. Um jogador da cor da graúna. Um jogador da cor dele. Os guardas quiseram bater nele mas o jogador não deixou. Os guardas respeitaram o seu jogador. E ele pegara uns trocados da mão dos amigos do jogador. Depois foi embora. Agora ele imaginava que era tudo sonho. Devia ser bom ser jogador e não Mané.
As luzes eram tão bonitas. Milhares de luzes vermelhas, verdes, amarelas. Azuis. O menino estava cansado de tanto correr. Pra que fugir se a realidade o procurava sempre. Pra que sonhar?

"Sabia que te encontrava aqui, Mané!"

Onde mais iriam encontra-lo? Somente ali naquelas luzes acendendo e apagando, luzes de uma beleza como somente a beleza dos olhos...

"Vai falar comigo não, Mané?"

Não havia o que falar. Perdera a capacidade de falar desde aquela noite. Noite em que gritara por toda a sua vida. Gritara apenas uma palavra: Não. Depois silenciara na madrugada afora. Os corpos de seu pai e de sua mãe inertes na frente da igreja dos martírios onde dormiam desde que chegaram na rodoviária do interior. Seus pertences e economias roubados na primeira esquina do bairro de São José. Seu pai que brincava passando a mão na sua cabeça. Seu pai que se chamava José, porém não era santo, ou não morreria assim sem ressurreição deixando o filho no mundo de meu Deus. Deus? Palavra estranha pra voltar agora nesse diálogo na Rua Nova. Sua mãe lhe dissera o que era Deus. Ele não lembrava mais do que era Deus, quando muito lembrava do que era mãe.

"Não vai correr, Mané?"

Foi o que os policiais disseram pra seus pais? Seus pais que correram e morreram debaixo de socos e pontapés e gritos de vagabundos. Ele observando a tudo calado debaixo dos papelões que protegiam do frio e da morte. Ficara calado até a consumação do crime. Calado como ordenara seu pai. No momento derradeiro se pôs a gritar: Não! Depois correra como um cão dos guardas desembestados atrás da última vítima.

"O Mané quer dar uma de herói! Vai ver tá pensando que é jogador de futebol!"

Dias e noites correndo e se alimentando de lixo e água do mangue. Dividindo a sujeira com os vira latas das ruas do centro. Quem dera fosse um cão, mas era um menino com a cor da graúna que já não tinha sorriso até descobrir aquelas luzes da Sloper. Luzes tão bonitas. Milhares de luzes vermelhas, verdes, amarelas. Azuis. Luzes diferentes de todas as luzes que conhecera na vida.

"O Mané nem sabe o que é Natal!"

Natal deveria ser uma coisa muito importante pra acenderem tantas luzes, pra trazerem tanta criança pra loja e comprarem tanto brinquedo. Crianças bonitas e bem limpinhas. Crianças com pai e mãe. Crianças que corriam e corriam e brincavam e sorriam e ninguém corria pra bater nelas. Crianças que brincavam de bola. Crianças vestidas com as camisas daqueles times de futebol. Camisas inteiras e não esses farrapos que cobriam seu corpo. Crianças que comiam umas coisas estranhas como as cores daquelas luzes. Crianças. Ele até tinha o tamanho de uma criança, mas só tinha sido criança até ter um pai e uma mãe. Depois não era nada, ou talvez fosse apenas isso que lhe chamavam os meninos maiores: Mané.

"Me entrega!"

Não podia entregar. O objeto era a única alegria conhecida junto daquelas luzes coloridas. Entrega-lo seria entregar a própria vida. Guardava o objeto fechado em suas mãozinhas, com medo de esquece-lo em algum canto distraído ou nas poucas horas de sono. Não. Aquilo era a única recordação de um outro tempo. O único motivo para continuar existindo. Entretanto, já não podia correr. As luzes podiam ir embora como seus pais. Retiradas da vida por alguém maior e mais forte que a vida.

O primeiro tapa o derrubou na sarjeta. O segundo cegou seu olho único. O outro olho era cego faz tempo. Não podia enxergar seus inimigos e levantou-se por puro reflexo involuntário e aflito de quem pensa que pode se erguer diante do destino. Foi pior. Começaram os chutes e cipoadas nas costas, nas pernas, na cabeça, em tudo que era lugar. O sangue derramou-se pela calçada. O sangue de Jerusalém. Uma janela se fechou na noite. O silêncio se fez maior. Buscaram abrir os seus dedos e roubar aquele objeto sagrado de junto do seu peito, em vão. Então, alguém lembrou da garrafa de aguardente largada no meio da rua. Quebraram a garrafa e enfiaram o gargalo várias vezes no menino da cor da graúna.

A morte muitas vezes é um conforto. Poderia escrever que a vida é uma benção. Poderia. Mentira. Porque o menino só teve sossego quando seu corpo virou um molambo inerte como o dos pais. Então a noite ficou sossegada com as luzes piscando amarelas, vermelhas, verdes e azuis. Luzes da Sloper. O líder dos meninos de rua pegou o tal objeto do corpo ensanguentado e levou sem olhar para o guarda acompanhando o ritual na esquina. O guarda pegou o presente e mandou a turma embora. Tinha apostado com os colegas qual seria o motivo de tanto carinho e proteção daquele moleque que vivia correndo de todo mundo, recusando-se a fazer parte da realidade recifense. Quem sabe uma jóia de madame? Agora o mistério era seu. De onde conhecia aquele moleque?

O guarda abriu o pequeno papel amarelado. Uma figura antiga. Um retrato de família. Uma criança sentada no colo da mãe. Um santinho daqueles que se compra a dez mil réis nas feiras. Um pai, uma mãe e seu filho.

Quando o guarda virou seus olhos para o corpo torturado no chão da Rua Nova, corpo não havia mais...

6 comentários:

Adalberto Day disse...

Valdir
Bela crônica do Roberto Vieira.
Um jogador da cor da graúna, nunca havia ouvido falar dessa forma, tal menino com sonhos e família, tudo acabado ali, no mundo muitas vezes perversos com muita gente.
E tal a Sábia Graúna o menino tentou voar, mas a crueldade era mais forte e tudo acabou ali na rua, no asfalto, mas a imagem ficou entre sua pequena mão com dedinhos a protegê-la Parabéns Roberto Vieira, muita linda a crônica, o conteúdo rico, mas perverso com a vida, com a triste realidade
Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau.

Osvaldo disse...

Caro Valdir;

O que esta Crónica tem de triste,... tem de belo.

Que belo momento literário eu acabo de ler. Parabéns para o Roberto Vieira e também para o Valdir por a ter publicado.

Feliz Natal, caro amigo,
Osvaldo

Por e-mail disse...

Valdir,

Meu querido migo internético.

Espero continuar merecendo a sua atenção durante o ano novo que se avizinha.

Pbns pelos textos, e muito obrigado por merecer sua generosidade.

Tudo de bom pra vc, familiares e amigos.

Valdir,
Agradeço e retribuo.
Saudações cruzmaltinas.
Casusa Neto.
Fortaleza-Ce

Aliás, tudo de bom pra todo mundo!!!!!!

Abração, com as eternas saudações vascaínas.

Antº Estevam/Fortaleza

valdir, tudo de bom pra você e que continue cada vez mais ins pirado, escrevendo cada vez mais e melhor. acho que em 2010 vamo ser parceiros.

abs
wilson/Recife

Amigo Valdir, agradeço e retribuo os votos de Feliz Natal, esticando-os a seus familiares, com votos também de Saúde e Paz.
Matei saudades do nosso Botafogo de 1945. Corrija-me e complete: da esquerda para a direita, em pé: Ivan, Negrinhão, Cid, Laranjeiras, Ari e Sarno; agachados: o ponta direita, não tenho certeza (pensei no Lula, mas ele em 1944 já estava no Palmeiras), Geninho, Heleno de Freitas, Tim e o ponta esquerda, também tenho dúvidas (fico entre Isaltino, Braguinha, Pardal e Walter, mais para esse último, pelos traços físicos). Notei a retificação na foto do Jair Rosa Pinto.
Um abração
Carlinhos/Rio

Desculpe pegar esta carona mas a de 1948 eu sei de cabeça ,,,lá vai
OSWALDO,GERSON ,SANTOS RODRIGO,AVILA,JUVENAL,PARAGUAIO,GENHINHO,PIRILO,OTAVIO,BRAGUINHA
Alias nesse ano foi inaugurado o campo do Bangu em Moça Bonita e eu fui c/ meu tio
( CACÁ ) pai do Carlinhos .

Feliz Natal p/ vcs Valdir e Carlinhos e todos os seus
Adilson/RIO

Barbirotto disse...

Um feliz natal meu irmão e que em 2010 vc faça parte da acadêmia de letras como o maior escritor do esporte brasileiro.
Sou se fã sim e dai!
Fique com Deus, com muita paz, saúde e realizações.
Barbirotto

Valdir Appel disse...

Mauro,
Aqui você manda.

Anônimo disse...

Oi Valdir. , passei so pra te desejar , sem muito bla bla blar, um ano novo danadu de bom, sempre lembrando de que
Jamais haverá ano novo se continuar a copiar os erros dos anos velhos.
Genildo Oliveira
Luís de Camões